Em 1947, o comitê de diretores do Bulletin of the Atomic Scientists da Universidade de Chicago, criou, e mantém até hoje, o Doomsday Clock (Relógio do Juízo Final, em português), relógio simbólico que utiliza uma analogia em que a humanidade está a “minutos para a meia-noite”. Os principais fatores que influenciam o Doomsday Clock são riscos nucleares e mudanças climáticas. No início deste ano, o relógio foi avançado para 100 segundos para meia-noite (1 minuto e 40 segundos), o marco mais próximo para uma catástrofe global provocada pelo homem desde sua criação.
Por que temos visto aumento em eventos climáticos extremos?
Segundo Paulo Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), enquanto eventos climáticos extremos ocorrem devido a vários motivos, o aumento observado da intensidade e frequência destes eventos — como as ondas de calor e frio intensos — está mais diretamente relacionado ao aumento da temperatura global do planeta e da remoção das florestas tropicais. No entanto, para José Carlos Figueiredo, meteorologista do Centro de Meteorologia de Bauru (IPMet — UNESP), é complicado se falar em aquecimento global no Brasil devido à precariedade e inconsistência da rede de coleta de dados no País. Para o especialista, a meteorologia ainda não é vista aqui com a mesma importância que países como EUA e Reino Unido enxergam, grande parte devido à falta de verbas para pesquisas. A maior parte dos fenômenos meteorológicos que associamos com o tempo meteorológico cotidiano (frio, quente, úmido, seco, entre outros) ocorre na troposfera. Neste sentido, explica Figueiredo, oscilações são normais e fazem parte do sistema caótico dos gases que compõem a atmosfera terrestre. Desta forma, gráficos com extremos são normais, pois com a presença da radiação solar (que não é uniformemente distribuída) e a mudança dos fluxo das correntes de ar da noite para o dia, não só a temperatura, mas todo as variáveis meteorológicas são afetadas. Já Anete Fernandes, meteorologista do 5º Distrito de Meteorologia do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET/5ºDISME) concorda que eventos extremos não estão necessariamente relacionados ao aquecimento global ou mudanças climáticas, mas ressalta que o aumento na frequência destes eventos podem ser uma resposta da atmosfera às mudanças atuais. Como exemplo, a meteorologista cita o período de seca na Amazônia na década de 1930, que voltou a se repetir em 2005 e novamente em 2010, reduzindo cada vez mais o tempo de recorrência, assim como a seca severa nas Regiões Centro-Oeste e Sudeste em 2014, algo nunca acontecido até então. As fortes ondas de calor registradas este ano, em adição ao aumento ano-a-ano da temperatura do ar, aumentam o déficit de pressão de vapor d’água no ar, resultando na diminuição da umidade relativa do ar e no consequente ressecamento da vegetação no solo. Desta forma, os incêndios que este ano afligiram não somente o Pantanal e a Amazônia, mas também o oeste da América do Norte, estão associados a esta condição de secura extrema do ar e da vegetação. A alteração nas características naturais do solo interferem na quantidade de radiação solar refletida de volta para a atmosfera livre, intensificando a absorção pela superfície o que leva ao aumento da temperatura do ar. Além disto, as queimadas aumentam a quantidade de CO2 na atmosfera, intensificando o efeito estufa e impedindo a redução das temperaturas durante a noite e madrugada. Para Fernandes, embora não seja possível mensurar, pode se afirmar que as queimadas pelo território brasileiro contribuíram de alguma forma para as altas temperaturas observadas, principalmente na Região Centro-Oeste.
Dias mais quentes da história no Brasil
Neste ano, várias cidades, principalmente no estado de São Paulo, registraram as maiores temperaturas de suas histórias. Segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), Lins (SP) registrou 43,5ºC no dia 7 deste mês, superando os 43ºC verificados em Iguape, em 1933. De acordo com o Climatempo, o estado paulista teve mais de 10 dias consecutivos de temperaturas iguais ou acima dos 40°C. Anteriormente, no dia 2 de outubro, a capital paulista bateu 37,4°C, sua maior temperatura em 2020 e segunda maior da série do Inmet, ficando atrás para os 37,8°C registrados em outubro de 2014, que coincidiu com um período de secas severas inéditas. Neste mês, eram esperados 130 milímetros de precipitação e foram registrados apenas 25 milímetros, 19% do esperado. Belo Horizonte, capital mineira, também sofreu com as ondas de calor neste ano. A cidade registrou 38,4ºC no dia 7 de outubro, a temperatura mais quente em sua história. Previamente no dia 3, a capital já havia atingido 37,8ºC. O dia mais quente já registrado no Brasil foi em Piauí, no dia 21 de novembro de 2005, com 44,7ºC. Para Fernandes, é normal ocorrerem ondas de calor no início de primavera, principalmente nas regiões Centro-Oeste e Sudeste, devido ao declínio da estação seca. No entanto, a especialista ressalta que este ano foi muito diferente, com várias localidades quebrando recordes históricos de temperatura máxima. Segundo Silvio Crestana, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), estamos vivendo uma época de grandes incertezas, por isso é preciso passar a trabalhar considerando os diferentes cenários e as relações de causa e efeito. O especialista acredita que teremos um mundo cada vez mais em crise, com colapsos de sistemas ecológicos, e aponta que será preciso construir resiliência destes sistemas, passando primeiro pela sobrevivência e aprendizado com as crises para então chegar na capacidade de adaptação às novas situações.
Setembro mais quente da história
Cientistas do Copernicus Climate Change Service (C3S) revelaram neste mês que setembro de 2020 foi o mês mais quente já registrado mundialmente, com este ano definido para ser um dos cinco mais quentes da história. O recorde anterior era de setembro de 2019, com 0,05°C inferior ao registrado este ano. Em contrapartida ao aumento da temperatura, os cientistas alertam que o gelo marinho do Ártico despencou para o segundo nível mais baixo já registrado e preveem que que, em meados do século, o gelo da região pode derreter completamente durante o verão. É possível que 2020 entre para a lista dos anos mais quentes de todos os tempos, com uma probabilidade superior a 98% de ficar entre os cinco primeiros, de acordo com a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional. 2019 foi o segundo ano mais quente da história, encerrando a década mais quente em todo o mundo. A temperatura global, como tendência, deve seguir aumentando anualmente. Para Crestana, os eventos extremos devem continuar aparecendo cada vez mais, e será preciso aprendermos a conviver com essas mudanças. No entanto, o especialista aponta a dificuldade de realizar um balanço energético completo e fechado, capaz de apontar a diferença entre o que entrou e saiu de radiação em um determinado período que explique o aumento de temperatura.
Primavera com La Niña
Desde o início de setembro, as águas do oceano Pacífico Equatorial Leste estão com temperatura abaixo da média, característica do fenômeno La Niña que, assim como o El Niño (aquecimento acima do normal), modifica o padrão de chuva e de temperatura em diversas regiões do planeta. Crestana ressalta que a presença do La Niña neste ano pode ser 80% responsável pelas mudanças climáticas sentidas. O fenômeno climático causa atraso e irregularidade das chuvas, além de gerar uma grande estiagem no Sul e reunir focos de chuvas nas regiões Norte e Nordeste. A previsão é que o La Niña seja curto este ano, terminando em janeiro.
Dias mais frios da história no Brasil
Além da onda de calor em setembro deste ano, o Brasil enfrentou ao longo do mês de agosto fortes frentes frias em várias localidades. Em Urupema, na Serra Catarinense, a temperatura chegou a -8,1°C no meio de julho, a mínima registrada no País este ano. Já em São Paulo, o frio chegou mesmo em agosto. Segundo o INMET, a menor temperatura registrada na cidade neste ano foi 8,2ºC — em maio, a cidade já havia chegado a 9,6ºC. Em 2019, a mínima foi de 7,2ºC e em 2016, 3,5ºC. No entanto, o dia mais frio na história de São Paulo foi 2 de agosto de 1955, com os termômetros apontando -2,1ºC. Segundo dados do INMET, a menor temperatura registrada no Brasil foi de -11,6°C, em Xanxerê, Santa Catarina, em 1945.
Centros urbanos e as mudanças climáticas
Os extremos de temperatura afetam indistintamente todo o país, de norte a sul, de leste a oeste. Contudo, as regiões onde a cobertura vegetal foi removida, expondo o solo e contando com menor quantidade de umidade para contrapor ao efeito direto do aquecimento do ar, experimentam valores ainda mais elevados de temperatura e seus efeitos adversos. Para Denise Duarte, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), o aumento da temperatura nas cidades pode ocorrer tanto por fatores globais — que atingem o mundo todo — quanto em decorrência de fenômenos induzidos pela urbanização, como as ondas de calor — evento natural, que é potencializado pelas mudanças climáticas globais. As estratégias que as cidades têm para mitigar a situação e se adaptar às mudanças climáticas são melhorar a orientação e proteção solar das construções, utilizar materiais adequados a cada estratégia, além de investir no aumento das áreas verdes urbanas, como parques e praças. Duarte destaca que substituir bosques e florestas pelas paredes verdes, que têm se popularizado atualmente em diversas cidades, incluindo São Paulo, não é uma solução definitiva. Segundo a professora, as paredes verdes devem servir como um adicional, uma contribuição extra, pois não há como utilizá-las como um mecanismo de compensação ambiental.
O que fazer para reduzir o aquecimento global
São várias as ações que podem e devem ser tomadas para reverter, ou ao menos diminuir este cenário de mudanças climáticas extremas. Para Nobre, a primeira e mais urgente medida é não somente reverter as atuais taxas de desflorestamento no Brasil para taxas de reflorestamento, como também recuperar pastos degradados e preservar as matas ciliares e os manguezais. Em seguida, diz o pesquisador, há que se transformar a matriz energética nacional para uma matriz 100% elétrica proveniente das gerações solar, eólica e hidráulica, a exemplo do que outros países já estão fazendo. Por último, mas mais importante, dado que a questão das mudanças climáticas é somente um ramo da crise humanitária que vivemos globalmente, há que se aplicar recursos e esforços, consistente e continuados na educação ambiental de nossas crianças e adolescentes. Crestana também acredita num processo em três etapas. O primeiro passo para o especialista é melhorar as análises e diagnósticos feitos para ser possível compreender melhor a relação entre os sistemas terrestres e o aquecimento global. O segundo passo é mitigar os efeitos. Se sabemos que o aquecimento global é gerado, pelo menos em parte, pelas emissões dos gases do efeito estufa, é preciso desenvolvermos atividades agropecuárias e industriais, assim como modelos econômicos, que permitam a bioeconomia e a economia circular. Para o especialista, o último passo é evitar, desde a emissão dos gases do efeito estufa até a destruição da biodiversidade. Fontes: Climatempo, INMET, Climate Change Service, Deposit Photos