O título do texto escrito por Ming é impactante: “Por que eu estou transformando meu filho em um cyborg” (“Why I’m turning my son into a cyborg”, no original em inglês). Porém, o que ela faz não tem nada de assustador e consiste em usar a tecnologia como uma ferramenta para tentar dar a criança os “superpoderes humanos” que o autismo o impede de ter. O primeiro argumento de Vivienne Ming é imergir o leitor no mundo de um autista, imaginando, por exemplo, como seria estar em um lugar onde todos falam uma língua que você não entende, as pessoas se frustram com você e o que parece uma tarefa simples para muitos (como o fato de ler uma expressão facial) só seria possível se você pudesse usar um superpoder. Foi exatamente esses superpoderes que Ming quis dar ao seu filho, ajudando-o a superar os desafios impostos pela convivência em sociedade. Tudo começou após receber o diagnóstico de que o filho é autista. Então, em vez de reagir como a maioria das mães, ela resolveu agir como uma “cientista maluca”. Por exemplo, quando ele teve diabetes, ela simplesmente construiu uma inteligência artificial capaz de relacionar as emoções e atividades do filho à quantidade de insulina necessária. Ming também explorou tecnologias que podem aumentar alguns sentidos humanos (como visão e audição), a memória, as emoções e a criatividade. Anos antes, durante a graduação, Ming trabalhou em um algoritmo de detecção de mentiras para ninguém menos que a CIA. Ao ver que os algoritmos eram capazes de aprender uma tarefa tão humana, ela ficou viciada em unir a inteligência natural à artificial. Anos mais tarde, sua carreira estava estabelecida na área de codificação neural e ciborgue, o que lhe rendeu o título da mulher que buscava “maximizar o potencial humano”.
Transformando seu filho em um ciborgue
Unindo suas habilidades em computação à experiência do projeto da CIA e em machine learning (aprendizado de máquinas), ela começou a criar sistemas de reconhecimento facial para o Google Glass. Com esses poderosos óculos de realidade aumentada, Vivienne Ming sabia que poderia ir muito além de ler os rostos das pessoas. Ela poderia, por exemplo, ler expressões faciais em uma sala, acessar as contas do Facebook das pessoas e mais (uma situação muito Black Mirror). No entanto, não era esse poder que a neurocientista queria. Seu objetivo era dar à crianças autistas, como seu filho, a oportunidade de ter uma compreensão melhor das pessoas ao seu redor. E foi isso que ela fez. Em 2013, Ming construiu um sistema chamado SuperGlass, o qual poderia reconhecer uma expressão facial e escrever a emoção na tela do Glass. Assim, um autista poderia compreender mais facilmente se a pessoa estava feliz, triste, nervosa, etc. Quase como um sistema de aprendizado, usar o Glass permitiu que as crianças aprendessem a interpretar as expressões faciais. Porém, nós sabemos que tentar reconhecer emoções por uma simples imagem do que elas representam não é totalmente eficiente (e é por isso que as máquinas não têm tanto sucesso nessa tarefa). Mesmo assim, a pesquisa evoluiu e provou ajudar muitas crianças a aprenderem a linguagem secreta das emoções. Quanto mais mergulhava na pesquisa, mais Ming percebia que não queria encontrar uma “cura” para o autismo do seu filho. O SuperGlass era apenas uma ferramenta para traduzir a sua experiência. Ela acredita que, quanto mais diferente, mais valioso você é. Então, surgiu o questionamento se ela estava ajudando essas crianças a trilhar um caminho em um mundo alienígena ou tornando-as alienígenas.
Qual é o limite entre o humano e a tecnologia?
Nos últimos anos, vimos surgir vários apetrechos conhecidos como neuropróteses, que são implantes que interagem com o cérebro e podem ajudar pessoas com problemas de surdez, perda de visão, estimulação cerebral e mais. Isso não seria criar um ciborgue? Quando fez um algoritmo que poderia auxiliar a percepção de fala de indivíduos, Vivienne Ming teve certeza que o que queria fazer durante o resto de sua vida era construir coisas que pudessem melhorar a qualidade de vida de alguém. Porém, isso também entra em combate com o fato do que seria uma vida melhor. Implantes em pessoas surdas, por exemplo, podem apagar traços únicos desses indivíduos, como a forma como eles se comunicam e quem realmente são. Do ponto de vista ético, implantes que dão algumas vantagens (seja na criatividade, na memória ou na execução de tarefas cotidianas) podem criar “super-humanos” que são mais valorizados. É como se deixássemos de ser humanos para nos tornarmos verdadeiros. Uma situação semelhante citada por Ming é a de jovens que usam drogas como ritalina para aumentar seus resultados acadêmicos. A ritalina é normalmente prescrita para ajudar quem tem déficit de atenção. Isso mostra que é um questionamento (um tanto ético e filosófico) que não se limita somente à tecnologia, mas que, pensando por todos os lados, é impulsionado por ela.
O que o futuro nos reserva?
De modo geral, a promessa da tecnologia é tornar a vida melhor e mais prática. Porém, toda essa reflexão sobre os argumentos de Ming, seus receios e as perspectivas de tornar o mundo melhor para o seu filho (talvez transformando-o em um ciborgue) nos levam a uma grande incerteza sobre o futuro. Se hoje praticamente não vivemos sem tecnologia, tudo indica que seremos ainda mais dependentes dela no futuro. E, nesse sentido, as vantagens sociais tendem a ser ainda mais ampliadas, já que a lógica é de que quem tem mais poder aquisitivo pode ter acesso a melhores tecnologias. Questionamentos como esses são comuns na ciência e na tecnologia e é preciso ser sensato na hora de escolher como agir. Vivianne Ming afirma que não quer curar ninguém de si mesmo, muito menos o seu filho. O que ela pretende é fazer com que ele seja capaz de interagir com o mundo que o cerca (mesmo que isso pareça transformá-lo em um ciborgue). A ficção já nos mostrou que um mundo padronizado não é nada bonito e que nossas diferenças são exatamente o que nos tornam humanos. Porém, é preciso impor limites para que um excesso de diferenças não nos deixe menos humanos. As tecnologias disponíveis atualmente podem e devem ser usadas na melhoria da qualidade de vida, mas ninguém precisa se tornar um super-humano (ou um ciborgue de verdade). Fontes: Quartz; Futurism.