O autor é o refugiado curdo Behrouz Boochani, o mais novo vencedor do 2019 Victorian Prize for Literature, maior prêmio de literatura da Austrália, e também o Non-Fiction Prize. Os prêmios juntos somam 100.000 dólares.
Um história de restrições
Muito mais do que um livro de excelência, a situação inusitada de Boochani traz à luz uma condição humanitária que vem sido alvo de críticas ao longos dos anos. Impossibilitado de pisar em solo australiano, o jornalista não pode estar presente na cerimônia para receber os dois prêmios a qual sua obra foi contemplada. Ele foi representado em Melbourne por seu tradutor e correspondente, Omid Tofighian. Escrita em farsi, as mensagens são um relato visceral sobre as condições extremas a qual Boochani vivenciou em um Centro de Detenção na Ilha Manus, na Papua Nova Guiné. O título, a propósito, vem de um provérbio do seu povo: “Os curdos não têm amigos, exceto nas montanhas”.
No Friends but the Mountains: mais que literatura, humanidade
Muito antes do muro entre as froteiras EUA-México se tornar sinônimo de medidas anti-imigração, o governo da Austrália decidiu que todos os migrantes que chegassem ao país de barco deveriam ser colocados em campos de detenção fora do país, na ilha de Nauru, no Oceano Pacífico, e na Ilha Manus, em Papua Nova Guiné. Desde então, a prática da detenção atraiu severos protestos e indignação no país, apoiados por instituições internacionais como o Comitê de Direitos Humanos da ONU, que considerou os campos “insustentáveis, desumanos e contrários às suas obrigações de direitos humanos”. O prêmio de Boochani por coloca um foco desconfortável e renovado no tratamento contínuo dos refugiados em Nauru e Papua Nova Guiné em nome da Austrália. O governo australiano, por sua vez, afirma que não é responsável pelo tratamento dos migrantes nos centros de detenção. “É uma história australiana que, como nação, não podemos nos orgulhar, mas é uma história que não pode ser ignorada”, escreveu o Centro Australiano de Direitos Humanos em resposta à cerimônia de premiação literária. Apelidado de “Guantánamo da Austrália” por seus críticos, o campo onde Boochani foi mantido durante cinco anos foi fechado em 2017, após anos de crescente pressão sobre a Austrália para acabar com a prática polêmica.
O processo
Em seu livro premiado No Friend But the Mountains, Boochani escreveu um olhar dentro do campo, apesar das difíceis condições de trabalho por lá. Sem acesso a um computador, o jornalista curdo deu conta de digitar um livro inteiro em seu telefone e o compartilhar com um tradutor via WhatsApp. Dessa forma, explicou, os guardas do acampamento não conseguiram detectar e confiscar os documentos. O jornalista, como muitos outros refugiados que foram mantidos no acampamento agora fechado, ainda vive involuntariamente em na Ilha de Manus e não é capaz de entrar na Austrália nem voltar para seu país de origem, o Irã, devido a natureza de seu trabalho. Autoridades na Austrália não fizeram exceção para a cerimônia de premiação na quinta-feira em Melbourne, sinalizando que o atual governo mantém sua polêmica filosofia linha dura sobre migração, mesmo antes das eleições de maio e uma mudança na opinião pública para uma abordagem menos radical. Em teoria, a política de imigração da Austrália prioriza os migrantes qualificados e aqueles necessários no mercado de trabalho. Mas as portas da Austrália estão fechadas para qualquer um que tente fazer essa viagem em um barco, sem um visto apropriado. O então primeiro-ministro da Austrália, Malcolm Turnbull, reconheceu abertamente essa abordagem de tolerância zero em um telefonema com o presidente Trump em janeiro de 2017, dizendo: “Não é por serem pessoas más. É porque, a fim de impedir os contrabandistas, tivemos que privá-los do produto. Então, nós dissemos que se você tentar vir para a Austrália de barco, mesmo se acharmos que você é a melhor pessoa do mundo, mesmo que você seja um gênio vencedor do Prêmio Nobel, nós não deixaremos você entrar. ”
Consequências
As condições na Ilha Manus tornaram-se tão críticas em 2017 que os médicos australianos manifestram a sua indignação em relação ao governo e sua política para impedir que os mesmos tenham acesso aos refugiados, escrevendo: “Acreditamos que as questões humanitárias têm precedência sobre a política. Esta é uma questão que vai além da imigração e do controle de fronteiras, mas que afeta a saúde das pessoas e as percepções dos outros sobre a nossa grande nação ”. Organizações de direitos humanos contestam que medidas suficientes foram tomadas após esses avisos. Os Médicos Sem Fronteiras condenaram o tratamento dado pela Austrália aos migrantes em dezembro passado, escrevendo em um relatório que o internamento estava tendo “um efeito desastroso na saúde mental dos refugiados, levando muitos a contemplar ou tentar o suicídio”. Em seu discurso de agradecimento entregue via videolink na quinta-feira, Boochani disse que a literatura o ajudou a superar as provações. “Eu tenho estado em uma gaiola por anos, mas ao longo deste tempo minha mente sempre produziu palavras, e essas palavras me levaram além das fronteiras, me levaram para o exterior e para lugares desconhecidos”, disse. Apesar de Boochani dizer que ele foi entrevistado por autoridades e espera que ele possa ser realocado para os Estados Unidos, tal oferta não foi feita até agora. Mas em seu discurso, o autor permaneceu otimista. “Eu realmente acredito que as palavras são mais poderosas do que as cercas deste lugar, esta prisão.”
Trecho de No Friends But The Mountains
Dias sem planos.Perdido e desorientado.Mentes ainda apanhadas nas ondas do oceano.Procurando paz de espírito em novas planícies.Mas as planícies da prisão são como um corredor que leva a um ringue.E o cheiro de suor quente em todos os lugares está deixando todo mundo louco. Um mês se passou desde que fui exilado para Manus. Eu sou um pedaço de carne jogado em uma terra desconhecida; uma prisão de sujeira e calor. Eu moro dentro de um mar de pessoas com rostos manchados e moldados pela raiva, rostos cheios de hostilidade. Toda semana, um ou dois aviões aterrissam nos destroços de um aeroporto na ilha e multidões de pessoas desembarcam. Horas depois, eles são jogados na prisão entre o tumulto ensurdecedor de pessoas deslocadas, como ovelhas em direção a um matadouro.