E, assim, de surpresa, como sempre acontece nesses eventos, eclode uma pandemia no World of Warcraft (WoW). Totalmente inesperado e fruto de um erro de programação, o Incidente do Sangue Corrompido, como ficou conhecido, durou uma semana inteira e devastou as cidades mais populosas do jogo, o que levou os programadores da Blizzard a entrar em parafuso para procurar soluções. Importante não só para os desenvolvedores, alguns cientistas que jogavam WoW decidiram analisar até que ponto o comportamento dos jogadores seria semelhante ao comportamento de pessoas reais num cenário como aquele. Dois nomes se destacam nesse momento: os infectologistas Dr. Nina Fefferman e Dr. Eric Lofgren, que lançaram, inclusive, um artigo detalhando a situação e traçando paralelos sociológicos ao que aconteceria numa pandemia de fato.
Como foi a pandemia no World of Warcraft?
É claro que, diferentemente do COVID-19, ninguém morreu de verdade. Mesmo assim, as atitudes das pessoas e o modo como o “vírus” se espalhou acabaram muito similares. Se você é das pessoas que assiste filmes do gênero pandêmico, como Contágio (2011), Vírus (2009) e outros, com certeza já considerou várias ações das personagens um tanto questionáveis, para dizer o mínimo. No fim, elas não são tão incomuns assim, como pudemos ver nos últimos meses. Enfim. O sangue corrompido, grande vilão da história, era para ser um debuff (no mundo dos games, é uma magia que causa penalidades ao longo do tempo) causado exclusivamente por um só chefe, Hakkar Soulflayer, o último desafio do novo mapa; essa magia seria transmitida por proximidade entre os jogadores enfrentando Hakkar. Ademais, o efeito deveria durar, no máximo, 10 segundos ou até o player morrer, e não era para sair da área do boss – o problema é que, por um erro de programação, ele se tornou permanente e, pior, não desapareceu ao sair da área. Por uma razão muito simples. Quem ‘herdou’ o vírus, por assim dizer, foram os animais de duas classes: caçadores e warlocks. Quando invocados no combate, essas companhias também foram afetadas pelo vírus. Ao fim do confronto, seus donos as mandaram de volta, sem saber que o sangue corrompido ainda estava ativo nelas. Ao invocarem-nas novamente, dessa vez numa cidade, o vírus voltou a ser ativado e se espalhou – para outros animais, para jogadores e para NPC’s (non-playable character, ou personagem não jogável, em português). O problema é que os NPC’s não morreram, já que, por não serem jogáveis, eles são imortais. Isso acarretou um problema colossal: eles se transformaram em vetores do sangue corrupto ou, dito de outra forma, em pacientes assintomáticos. Soa familiar, né? Por causa disso, eles infectaram uma quantidade absurda de jogadores. Várias notícias (cuja veracidade e fonte você pode checar ao final da matéria) afirmaram, na época, que os players mortos eram tantos que chegavam aos mil. A pandemia no World of Warcraft pareceu tão real, ainda mais se considerarmos tudo que já passamos com o COVID-19, que acabou servindo para desenvolver modelos de previsão comportamental. Com isso, fica fácil de traçar paralelos ao nosso mundo: houve jogadores que tentaram ajudar, com feitiços de cura e bênçãos; jogadores que simplesmente fugiram das cidades grandes para o interior; que buscaram se isolar de outras comunidades; negacionistas; que espalharam o sangue corrompido de propósito; aventureiros que foram até as áreas para ver o que estava acontecendo; e até profetas do apocalipse. Em pouco tempo, o chat global estava cheio de perguntas não respondidas e players desesperados. Não demorou para que os desenvolvedores tentassem controlar o problema, criando zonas de quarentena para todos os infectados. É fácil de se imaginar que isso tampouco funcionou, criando ainda mais caos – no total, 3 servidores foram infectados. A sorte é que o Hakkar Soulflayer era um chefe de nível alto, então os servidores destinados a jogadores intermediários e iniciantes não foram afetados. Numa entrevista do ano passado para o site PC Gamer, a Dr. Nina Fefferman falou sobre como a experiência com a pandemia no World of Warcraft ajudou no combate ao coronavírus e como tudo isso colaborou para suas pesquisas na Universidade do Tennessee. Muitos – cientistas ou não – alegaram que não dava para prever o comportamento das pessoas por meio de um jogo de computador. Segundo essas pessoas, como alguém seria capaz de transmitir de maneira voluntária um vírus potencialmente mortal? Só mesmo numa pandemia no World of Warcraft. Ora, acredito que, a essa altura da pandemia, esse tipo de situação não deve surpreender ninguém. Isso depende do seu conceito de propósito que, muito provavelmente, está errado, a depender do posicionamento. Se você sabe que pode pegar o vírus, mesmo numa forma assintomática, carregá-lo por aí e infectar outras pessoas que, por norma, você não conhece e, mesmo assim, você decide ir a bares, praias, festas e outras aglomerações, ou então se recusa a usar máscara (seja lá por qual motivo pífio você pense ser válido), bem, isso diz bastante sobre sua capacidade de viver em sociedade. Bom, esse episódio ensinou a todos que mesmo em ambientes supostamente controlados, as coisas podem sair do controle, além de que mostrou o potencial que os jogos possuem de imitar a vida. Apesar dessa máxima soar bastante aristotélica e nem sempre correta, no caso da pandemia do World of Warcraft, essa imitação foi bem útil para mostrar aos pesquisadores como decisões de um grupo pequeno de indivíduos pode afetar uma sociedade inteira – que foi o caso dos que decidiram passar o sangue corrompido de propósito. No fim da primeira semana, a Blizzard precisou reiniciar o próprio jogo para consertar esse erro brutal, que entrou para a história dos games. Aos que compreendem inglês, o canal Launcher, em parceria com o jornal The Washington Post, fez uma reportagem em vídeo sobre o ocorrido. Fontes: Washington Post | Ars Technica | BBC | PC Gamer | Wikipedia | The Lancet