Leia com cuidado — o bloco a seguir contém revelações sobre a trama das três primeiras temporadas, então prossiga por sua própria conta e risco, caso não tenha assistido ainda.
O vampiro, o caçador e a feiticeira
Apesar de ser baseada largamente em diversos jogos da série como um todo, a animação de Castlevania na Netflix foca em alguns títulos específicos da franquia para construir a linha do tempo da história. A princípio, o roteiro busca inspiração em Castlevania III: Dracula’s Curse (“A Maldição de Drácula”, em tradução livre), de 1989, lançado para o Famicom: Nele, o protagonista Trevor Belmont brande o chicote Matador de Vampiros, de sua família, pelas hordas de inimigos, encontrando Sypha Belnades, uma feiticeira que também caça vampiros, Alucard (ou Adrian Tepes), filho de Drácula, e o personagem Grant Danasty, um aventureiro que ficou de fora da série animada. Esses personagens ajudam Trevor a chegar até Drácula, o vilão final, e matá-lo. Mais tarde na série, aparecem personagens de outros jogos para incrementar o elenco, como os mestres de forja Isaac e Hector, presentes em Castlevania: Curse of Darkness (“Maldição da Escuridão”, em tradução livre), bem como o alquimista e místico Saint-Germain. Várias criaturas presentes em diversos jogos da franquia dão as caras como Criaturas da Noite, deixando muitas referências para os fãs veteranos da franquia notarem — e até algumas brincadeirinhas em relação à desenvolvedora dos games, a Konami. Já a identidade visual da animação se inspira bastante no mais popular jogo da série – Symphony of the Night (“Sinfonia da Noite”, em tradução livre) — e difere muito do material de onde o roteiro se inspira, o que não é um demérito, pois o visual da própria franquia evoluiu bastante ao longo dos anos. A princípio, a história da animação se baseia em Dracula’s Curse apenas até a segunda temporada — quando Drácula é morto pelos protagonistas –, com algumas adaptações, como Sypha sendo uma oradora e feiticeira ao invés de uma caçadora de vampiros, por exemplo. A introdução dos mestres de forja também é uma liberdade criativa que foi apresentada na segunda temporada e seguiu para o resto da série, com cada um dos núcleos e personagens tomando suas próprias direções e tendo agendas próprias, o que torna a trama interessante e diversa, tocando em diversos assuntos, como humanidade, moralidade e intolerância religiosa.
Descanse em paz (só que não)
A quarta temporada de Castlevania retoma a história exatamente de onde paramos anteriormente – Trevor e Sypha estão numa cansativa jornada enfrentando Criaturas da Noite sem fim pela Valáquia, Alucard vive recluso em seu castelo após uma tentativa falha de assassinato, as quatro irmãs vampiras Carmilla, Lenore, Striga e Morana continuam com seus planos de dominação, com Hector servindo de escravo, e Isaac leva adiante seus próprios planos de conquista. Mas as coisas só tendem a piorar: Drácula foi morto pelos mocinhos há um bom tempo, porém cultistas espalhados pela Europa não cansam de tentar trazê-lo de volta. Cada vez mais exaustos, Trevor e Sypha vagam com pouco propósito até chegar em Targoviste, local sob o qual Drácula choveu sua ira pela morte da esposa, Lisa, pela primeira vez. Lá, encontram Ratko e Varney, novos personagens dessa temporada — enquanto Alucard recebe pedidos de ajuda de uma vila próxima a seu castelo, Danesti, onde encontra Saint-Germain. A partir daí, a trama começa a andar, e a história da temporada toma sua forma. Logo abaixo vem a sessão sem spoilers sobre a quarta temporada de Castlevania.
Muita porradaria, mas também muito papo
Nos aspectos técnicos, os combates da série continuam um primor — a coreografia das lutas conta com muita diversidade e ação estonteante, de deixar qualquer espectador na ponta do sofá. Uma grata variedade de armas é utilizada pelos personagens, em mais uma homenagem a quem experimentou os jogos nos quais a série é baseada — para quem não jogou, ainda há justificativa para essa variedade e o uso das armas serve como ferramenta para o enredo, então todos ganham. Outro aspecto no qual a série brilha — e a quarta temporada não é exceção nisso — é nos diálogos. Algo que pude notar desde a primeira temporada é que muitas conversas tem um quê de realidade “desconfortável”, digamos assim; alguns personagens se repetem intencionalmente, outros pedem para que falas sejam repetidas porque não ouviram ou não estavam prestando atenção, outros ainda falam besteira e são corrigidos — assim como nós faríamos. Nem todos os diálogos são assim, é claro, mas é uma sutileza muito bem-vinda. Além disso, muitos papos com bom conteúdo ocorrem entre os personagens, discutindo coisas que nós mesmos nos perguntamos ao assistir à série e expondo suas ideias, às vezes apenas para aprofundar suas personalidades. Algumas vezes as conversas se alongam bastante e, em dados momentos, são expositivas até demais — quando personagens falam sozinhos ou contam todos os seus planos detalhadamente, por exemplo — mas nada que afete a qualidade da série. As motivações dos personagens também prosseguem sendo um ponto forte, e não há um personagem cujas razões para fazer o que faz sejam fracas ou inexplicadas. É possível compreender — e, em alguns casos, simpatizar com — o pano de fundo de heróis e vilões e o que os tornou o que são agora, e então deleitar-se nos conflitos que isso acaba gerando, às vezes torcendo por quem você menos esperava. Personagens antigos e novos ganham bons desenvolvimentos e personalidades e, apesar de nem todos terem uma resolução ou fechamento como gostaríamos, é possível dizer que a sensação ao final da quarta temporada de Castlevania é satisfatória. A trilha sonora não é especialmente memorável, e provavelmente apenas a música tema e alguma outra música tocada em momentos mais dramáticos poderão ficar um pouco na cabeça, mas não espere se pegar assoviando elas por aí. A música faz o seu papel quando precisa fazê-lo — e apenas isso, não fede nem cheira.
Nem tudo são flores…
Falando em qualidade, uma boa resenha de Castlevania não estaria completa sem falar dos seus defeitos. Assim como nas temporadas anteriores, a animação perde um pouco do esmero em momentos mais calmos, como caminhadas e interações simples entre os personagens. Não é que a qualidade do traço ou a movimentação fiquem essencialmente ruins, mas é notável como os personagens ficam mais travados e mecânicos — um exemplo mais óbvio é uma certa cena… picante, digamos, da terceira temporada — a ponto de ser uma mudança perceptível. Como a série tem um foco maior na ação, é compreensível que o orçamento bem mais seja direcionado às cenas de combate, então isso é algo que dá para relevar até certo ponto — ainda assim, me pergunto como seria a série caso a qualidade se mantivesse em todas as cenas. Há também momentos estranhos em relação à mixagem de som em relação à fala dos personagens; tudo bem que é característica do meio-vampiro Alucard falar baixo, quase sussurrando — mas às vezes é difícil ouvir o que ele fala, por exemplo, e esse problema não se resume apenas a esse personagem. Quem não assiste com legendas certamente terá alguma dificuldade em entender algumas falas. Um elemento que não é necessariamente um defeito são os elementos em 3D que a animação utiliza em diversas cenas, o que sabemos ser uma estratégia para dar uma economizada e gastar menos tempo com os desenhos. Na quarta temporada de Castlevania, dá para notar isso em uma determinada cena envolvendo uma carroça e em outra nas ruínas da propriedade dos Belmont; os elementos até que não são mal feitos e podem talvez passar despercebidos (principalmente porque as cenas são propositadamente curtas), mas quem assistiu os últimos filmes de Berserk provavelmente terá estresse pós-traumático ao ver essas cenas. Esse tipo de técnica certamente aparecerá cada vez mais em animações, às vezes utilizada em larga escala — como em Dorohedoro e Beastars, ambos animes também disponíveis na Netflix — e, quando bem dosada e trabalhada, pode ser uma qualidade, mas também um defeito em potencial. A obviedade da utilização da técnica em Castlevania não compromete a obra, mas na minha opinião, tira alguns pontinhos. Agora, fique com a sessão cheia de revelações sobre a trama — dê scroll com cautela.
O que é um spoiler se não uma pilha de segredos?
Para começar esta parte, logo digo que, em alguns momentos, há coisas deixadas no ar quanto ao desenvolvimento de personagens. Por exemplo, Hector, que terminou a temporada passada sendo escravizado por Lenore, já se apresenta como um servo aparentemente fiel e íntimo da vampira — quando tudo o que ele passava ao espectador era revolta e indignação no episódio imediatamente anterior. Pode-se concluir que ele se resignou e se limitou a tramar um plano a longo prazo para, um dia, fugir do controle da diplomata imortal (além de uma aparente síndrome de Estocolmo, já que ele demonstra gostar dela). Embora nem tudo precise ser explicado, é um pouco estranho que essa mudança tenha sido sequer citada ou representada. Os novos personagens não têm tanto tempo de tela quanto os que já conhecíamos, mas foram muitíssimo bem utilizados: Ratko traz o que há de mais selvagem e primal em um vampiro com sua sede de sangue e convence como um veterano há muito esperando por uma batalha desafiadora, e Varney faz um bom papel como uma criatura abjeta e fétida, mas extremamente esperta, que espera até o último momento para revelar sua real identidade. Falando nisso, que identidade! A Morte, figura bem recorrente nos jogos de Castlevania, chega com muito estilo e faz uma boa revelação ao estilo dos vilões de James Bond, explicando seus planos e as maquinações maquiavélicas que levaram à sua conclusão. O medo que sentimos junto com os personagens de que tudo que é bom e puro no mundo se perderá para sempre é muito palpável quando Drácula e Lisa dividem o corpo de um Rebis, a ponto de acreditar realmente que Trevor não sobreviveu ao embate posterior com o Ceifador de Almas – que foi vencido com habilidade, mas sinceramente, com muuuita sorte também: é quase de se duvidar que fosse possível. Os embates de Isaac contra as hordas de criaturas da noite controladas por Carmilla e contra a própria ambiciosa vampira são um espetáculo visual, com o destino dela deixando qualquer um estarrecido; já o final de Lenore também tem seu impacto, mas bem mais dramático e muito menos violento. As esposas Striga e Morana, no entanto, têm uma conclusão pouco definitiva que provavelmente desagradou alguns espectadores — seu final é bom para elas, mas deixa a imaginação de quem assiste decidir o que se deu com as vampiras. Suas motivações fazem sentido e o embate de Striga contra os fazendeiros em sua armadura protetora é incrível de se assistir, mas a curta aparição do casal deixou um gostinho de quero mais. Apesar de também deixar margem para interpretações e teorias, os finais tanto de Isaac quanto de Hector são interessantes, com ambos tendo tomado as rédeas das próprias vidas e traçando metas para o futuro, que felizmente para os humanos, são menos sangrentas e mais construtivas, apesar de ainda suspeitas. O que não faltou foi desenvolvimento de personagem para esses dois. Saint-Germain, indo desta vez para o lado dos vilões, teve motivações bem explicadas e uma parcial redenção no final, que apesar de não justificar seus atos, serviu como uma justa correção dos erros cometidos e rendeu uma morte ao menos digna. Por fim, o trio de protagonistas finalmente encontra um descanso da luta que parecia eterna, e pela primeira vez em muitos anos, têm a chance de relaxar junto ao povo de Danesti, incluindo Greta (que parece ser uma referência a Grant Danasty, embora sutil), num surpreendente “final feliz” – para eles, é claro, já que incontáveis mortes e horror tiveram de se suceder para que tudo acabasse bem. É muito interessante ver como Alucard vai aprendendo a lidar com seu lado humano e a se relacionar com os mortais e como Sypha vai se soltando cada vez mais com o convívio com Trevor; ele é o único que não parece ter mudado muito, apesar de podermos interpretar que seu ato altruísta e o “eu te amo” dirigido à Sypha sejam indícios de que ele finalmente se abriu um pouco aos outros, deixando os sentimentos finalmente fluírem, talvez pela primeira vez na vida.
Um bom final, mas um futuro incerto
A quarta temporada de Castlevania consegue amarrar bem as pontas deixadas no início da série numa bela tapeçaria com cor de sangue. Por muitas vezes amarga ou no máximo agridoce, a animação termina num tom curiosamente positivo até mesmo para o vilão inicial da coisa toda — é como uma cerveja amarga e frutada com um retrogosto inesperadamente doce: áspera, mas completa e satisfatória. Em um mundo onde adaptações de jogos em outras mídias são de dar tristeza aos fãs, Castlevania figura como uma das gratas exceções, seguramente ficando no pódio como uma das melhores obras derivadas dos videogames de todos os tempos. Apesar da gravidez de Sypha e a inesperada cena final com Drácula (agora Vlad) e Lisa Tepes voltando de forma sobrenatural serem pontos que nos instigam a esperar mais desenvolvimentos na história, não haverá mais temporadas — não com estes personagens e não nessa época da história, pelo menos. Warren Ellis também não deve voltar aos roteiros, já que saiu da produção por alegações de assédio, deixando a série pouco depois de terminar o roteiro da última temporada. Há, no entanto, planos para uma série derivada com outros personagens; quem se aventurou pelos jogos sabe que Drácula sempre volta e sempre é enfrentado pelo Belmont da geração respectiva, seja descendente ou ascendente de Trevor, então há histórias de sobra para se basear na produção de uma nova série. Eu, pelo menos, estou ansioso para ouvir o estalo do chicote dos Belmont ecoar mais uma vez pelos salões do castelo de Drácula Tepes.
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